segunda-feira, 7 de abril de 2014

Os peixes, o curral e a guerra.

Assinada pelo jornalista João Marcos Coelho a Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2014 publicou entrevista com o  sociólogo italiano Nuccio Ordine autor do livro “A utilidade do inútil”. Um dos trechos ilustra o que seria a cultura de um povo para a maioria de seus integrantes. O autor fala de dois peixes jovens nadando em uma direção quando encontram um peixe mais velho que lhes pergunta: “ Como está a água hoje?”. Os jovens continuam em frente e um pergunta ao outro: “O que é água?”.
Imagem semelhante foi usada pela analista do comportamento norueguesa Inguun Sandaker para se referir à cultura como o conjunto de normas, princípios e valores que regem sutilmente a vida em comum na sociedade. Em regiões que sofrem com o inverno rigoroso os agricultores costumam ter o curral em recinto fechado adjacente à casa. Quem entra no curral sente um cheiro muito forte, mas quem lá trabalha não sente mais o cheiro. Se alguém perguntar “Que cheiro é este?” poderá ouvir como resposta “Que cheiro?”.
As duas imagens ilustram o mesmo fenômeno: para quem é parte de uma cultura, o controle exercido pelo grupo, apesar de regular quase tudo que fazemos, é quase invisível. Quando entramos em contato com outro grupo, sentimos o cheiro daquele controle e vemos as pessoas nadando naquelas ondas sociais.  A psicoterapia tem efeito semelhante a esse mergulho no “aquário” social dos outros; o processo nos ajuda a ver a água que nos faz boiar e as correntes que ajudam ou prejudicam nosso percurso.
Um exemplo dramático de descoberta da “água” que nos  envolve é descrito por Tim O’Brien em seu livro “The things they carried” (www.marinerbooks.com). O autor serviu o exército americano na guerra do Vietnã na década de 70. Foi convocado; hoje o exército recruta voluntários. Era ótimo aluno no ensino médio. Poderia vir a ser admitido em uma das melhores universidades, com bolsa até, talvez. Mas a convocação mudou tudo; a única escapatória para quem não quisesse ir para a guerra era refugiar-se no Canadá. Tim O’Brien tentou esse caminho, chegou até a fronteira, estava em um barco a remo já perto da margem canadense, quando desistiu. A tradução do trecho a seguir é minha:
“Tentei sair do barco.
Agarrei a borda, me inclinei e pensei, Agora.
Chorei. Era simplesmente impossível.
Todos aqueles olhos voltados para mim – minha cidade, todo o universo – e eu não podia me arriscar a passar vergonha. Foi como se minha vida tivesse uma audiência, todas aquelas faces me olhando da margem do rio, e em minha cabeça eu podia ouvir pessoas me gritando. Traidor! me diziam. Vira-casaca! Covarde! Senti meu rosto vermelho de vergonha. Não podia tolerar isso. Não poderia aguentar a zombaria, ou a desgraça, ou o ridículo. Mesmo em  minha imaginação, com a margem a apenas vinte jardas, eu não conseguia agir com coragem. Não tinha nada a ver com moralidade. Era pura vergonha.
E aí eu cedi.
Eu iria para a guerra – iria matar e talvez morrer – porque estava envergonhado.
Isso era triste. E então sentei no barco e chorei.” 
(O’Brien, T. (2009). The things they carried. Pp. 56-57.  New York, NY: Mariner Books).


3 comentários:

  1. Talvez não tenha nada a ver com o assunto, mas enquanto lia, veio-me à memória aqueles lembretes que a pessoa coloca na porta da geladeira com muita antecedência, e acaba se acostumando com aquela
    "paisagem", deixando de percebê-la. E o lembrete resulta inútil.

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  2. Quanto à história do jovem canadense... Ele não está só. Somos de tal maneira presos a certos costumes (comportamentos) que não conseguimos fugir deles, mesmo com sacrifício e dor. E tudo por medo do "o que vão dizer! E a vergonha que vou passar! Vou ficar desmoralizado!", e não por achar moralmente errada a pretendida conduta.

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  3. Compreendo bem professor...

    Desenvolvi o hábito de falar sozinho quando estou me deslocando nas ruas...

    As consequências sociais são avassaladoras mesmo.

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