Assinada pelo jornalista João
Marcos Coelho a Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2014 publicou
entrevista com o sociólogo italiano
Nuccio Ordine autor do livro “A utilidade do inútil”. Um dos trechos ilustra o
que seria a cultura de um povo para a maioria de seus integrantes. O autor fala
de dois peixes jovens nadando em uma direção quando encontram um peixe mais
velho que lhes pergunta: “ Como está a água hoje?”. Os jovens continuam em
frente e um pergunta ao outro: “O que é água?”.
Imagem semelhante foi usada pela
analista do comportamento norueguesa Inguun Sandaker para se referir à cultura
como o conjunto de normas, princípios e valores que regem sutilmente a vida em
comum na sociedade. Em regiões que sofrem com o inverno rigoroso os
agricultores costumam ter o curral em recinto fechado adjacente à casa. Quem
entra no curral sente um cheiro muito forte, mas quem lá trabalha não sente mais
o cheiro. Se alguém perguntar “Que cheiro é este?” poderá ouvir como resposta
“Que cheiro?”.
As duas imagens ilustram o mesmo
fenômeno: para quem é parte de uma cultura, o controle exercido pelo grupo,
apesar de regular quase tudo que fazemos, é quase invisível. Quando entramos em
contato com outro grupo, sentimos o cheiro daquele controle e vemos as pessoas
nadando naquelas ondas sociais. A
psicoterapia tem efeito semelhante a esse mergulho no “aquário” social dos
outros; o processo nos ajuda a ver a água que nos faz boiar e as correntes que
ajudam ou prejudicam nosso percurso.
Um exemplo dramático de
descoberta da “água” que nos envolve é
descrito por Tim O’Brien em seu livro “The things they carried” (www.marinerbooks.com). O autor serviu o
exército americano na guerra do Vietnã na década de 70. Foi convocado; hoje o
exército recruta voluntários. Era ótimo aluno no ensino médio. Poderia vir a
ser admitido em uma das melhores universidades, com bolsa até, talvez. Mas a
convocação mudou tudo; a única escapatória para quem não quisesse ir para a
guerra era refugiar-se no Canadá. Tim O’Brien tentou esse caminho, chegou até a
fronteira, estava em um barco a remo já perto da margem canadense, quando
desistiu. A tradução do trecho a seguir é minha:
“Tentei sair do barco.
Agarrei a borda, me inclinei e
pensei, Agora.
Chorei. Era simplesmente
impossível.
Todos aqueles olhos voltados para
mim – minha cidade, todo o universo – e eu não podia me arriscar a passar
vergonha. Foi como se minha vida tivesse uma audiência, todas aquelas faces me
olhando da margem do rio, e em minha cabeça eu podia ouvir pessoas me gritando.
Traidor! me diziam. Vira-casaca! Covarde! Senti meu rosto vermelho de vergonha.
Não podia tolerar isso. Não poderia aguentar a zombaria, ou a desgraça, ou o
ridículo. Mesmo em minha imaginação, com
a margem a apenas vinte jardas, eu não conseguia agir com coragem. Não tinha
nada a ver com moralidade. Era pura vergonha.
E aí eu cedi.
Eu iria para a guerra – iria
matar e talvez morrer – porque estava envergonhado.
Isso era triste. E então sentei
no barco e chorei.”
(O’Brien, T. (2009). The things they carried. Pp.
56-57. New York, NY: Mariner Books).
Talvez não tenha nada a ver com o assunto, mas enquanto lia, veio-me à memória aqueles lembretes que a pessoa coloca na porta da geladeira com muita antecedência, e acaba se acostumando com aquela
ResponderExcluir"paisagem", deixando de percebê-la. E o lembrete resulta inútil.
Quanto à história do jovem canadense... Ele não está só. Somos de tal maneira presos a certos costumes (comportamentos) que não conseguimos fugir deles, mesmo com sacrifício e dor. E tudo por medo do "o que vão dizer! E a vergonha que vou passar! Vou ficar desmoralizado!", e não por achar moralmente errada a pretendida conduta.
ResponderExcluirCompreendo bem professor...
ResponderExcluirDesenvolvi o hábito de falar sozinho quando estou me deslocando nas ruas...
As consequências sociais são avassaladoras mesmo.