O jornal Correio
Braziliense de 09 de abril corrente traz em sua página de ciência artigo de
divulgação da jornalista Roberta Machado com o título “Receita linguística” e chamada “Experimento
feito na Inglaterra reforça a teoria de que vários idiomas criados pelo homem
obedecem a alguns padrões universais”. Este texto poderia começar de outra
forma não fosse a afirmação da jornalista:
“O conceito de uma gramática
universal surgiu há mais de oito séculos, mas só ganhou força a partir da
década de 50, com a publicação de trabalhos de Noam Chomsky. Esse filósofo e
linguista enfrentou o pensamento behaviorista ao defender a ideia de que toda
pessoa nasce com a habilidade inerente de aprender qualquer língua no mundo.”
A reportagem cita
declaração de Ana Paula Shcer, professora do Departamento de Linguística da
Universidade de São Paulo (USP):
“Há fatos ainda mais simples que
confirmam a existência de uma linguagem universal. Uma forte evidência é que,
aos 3 ou 4 anos, uma criança saudável já adquiriu sua língua materna: trata-se
de um sistema muito complexo, adquirido muito rapidamente.”
Sobre o experimento
base do artigo da jornalista, pesquisadores ingleses mostraram a predominância
de adjetivos sobre numerais e sobre demonstrativos em voluntários ingleses que
participaram do trabalho, e afirmam que isso é demonstrado em várias línguas do
mundo (mas não em todas). Atribuem isso à genética. Haveria uma gramática
universal que herdamos (e os que falam as línguas que são exceções? Herdaram o
quê?).
Não é necessário
postular a herança de toda uma gramática. O que a Análise do Comportamento tem
mostrado é que aprendizagens baseadas em características de estímulos físicos
são mais fáceis e são aprendidas antes que aprendizagens baseadas em relações
entre estímulos (como “maior que” ou “menor que”) ou entre comparações entre
múltiplos aspectos do ambiente (numerais, demonstrativos). A aquisição rápida
de repertórios é demonstrada há décadas por pesquisas sobre relações de
equivalência, área em que quatro universidades brasileiras se destacam
internacionalmente: UnB, USP, e Universidades Federais de São Carlos (UFSCar) e
do Pará (UFPa).
Ninguém questiona a
ideia de que nascemos com habilidades para aprender, mas não é necessário
levantar a hipótese de que nascemos com o cérebro pronto para aprender a
língua. Uma regra importante em qualquer ciência é a de que entre duas
explicações, ficamos com a mais simples. Não há dúvida que nascemos com
habilidades inerentes ao aprendizado da língua. Milhões de anos de evolução da
espécie humana nos legaram um sistema nervoso e estruturas anatômicas
característicos do homem. Mas ao nascer ainda não temos prontos nem o sistema
nervoso nem as estruturas anatômicas. A criança de três anos que domina a
gramática da língua materna tem três anos de aprendizagem baseada no que herdou
dos antepassados, mas a direção do que vai aprendendo depende muito das
interações que tem com seu ambiente, a começar por sua vida no útero.
Nenhum behaviorista,
nem Watson, postulou que o organismo é uma folha em branco para um texto
escrito pelo ambiente. Esse é um boneco de palha levantado por aqueles que são
felizes por não saberem que não sabem. Não é daí que vem uma rejeição de uma
gramática universal pronta e acabada que a genética nos daria.
Ao
nascer o bebê humano é em grande parte uma incógnita. Só não é um desconhecido
total porque são notórias as principais características da espécie. Sabemos que
são pequenas as probabilidades de vir a ter mais de 2,20 ou menos de 1,50
metros de altura, que seu peso manterá alguma relação positiva com sua altura,
é bípede, mas levará algum tempo para ficar em pé, aprenderá a falar, mas para
isso vai depender de ajuda e incentivo. Para sobreviver vai depender da mãe
para alimentá-lo e garantir proteção, sua mera presença um sinal de segurança.
Em
maior ou menor grau todo bebê humano nasce preparado para uma ligação especial
com quem o protege e alimenta, a mãe, ou cuidador (a). A voz da mãe já ouvia
antes de nascer, um som que vai fortalecer o apego. O traçado do rosto humano é
outra característica do ambiente que nasce “familiar” - o bebê não reage a
faces como estímulos novos. O leite materno tem tudo o que precisa, e a sucção
do seio nem tem que ser deliberada – o reflexo já vem pronto.
Várias
dessas características nem são privativas dos humanos. Mamíferos, especialmente
primatas, têm muitas das características que gostamos de acreditar que sejam
exclusivamente humanas. No caso dos cangurus os filhotes são até mais indefesos
que os nossos bebês – entre nascer e estar no mundo passam meses dentro da
bolsa de sua mãe, com acesso às mamas e à vista do que se passa lá fora. Os
macaquinhos agarram-se reflexamente aos pelos da mãe, um reflexo que seus
“primos” humanos perderam, sobrou apenas um resquício que costumamos observar
em visita ao pediatra.
Ainda há muito a ser
estudado na interação herança-ambiente. Postular que estruturas cognitivas já
vêm prontas não é postura de uma ciência natural. O que já sabemos é que a
quantidade e a qualidade das interações da criança até os três anos são
fundamentais para seu desenvolvimento posterior. Ações governamentais para
assistir crianças nascidas em famílias de baixo nível socioeconômico são inócuas
quando começam apenas quando a criança já tem três anos.
A teoria da gramática universal biologicamente
herdada é tão disseminada que até os leigos a usam. Ao comentar que tanto meus
netos brasileiros quanto os americanos passaram pela fase de regularizar verbos
(o último exemplo vem do Luca, o caçula, dizendo para mim:”Mommy buyed a ball for me”), ouvi a
explicação: olha aí uma prova da gramática universal do Chomsky. Dá vontade de
perguntar: Já ouviram falar em generalização?
David C. Palmer publicou recentemente o artigo "The role of atomic repertoin complex behavior" na revista The Behavior Analyst, 2013, 35, 59-43. Recomendo a quem quiser ler mais sobre o assunto.
David C. Palmer publicou recentemente o artigo "The role of atomic repertoin complex behavior" na revista The Behavior Analyst, 2013, 35, 59-43. Recomendo a quem quiser ler mais sobre o assunto.
Caro João Claudio. Gostaria muito que certas pessoas que não irão ler, lessem o livro O cérebro do século XXI do neurocientista Steve Rose. Mas antes da leitura deste livro poderiam muito bem ler Smith, N.W. (2007). Events and constructs. The Psychological Record,57,169-186. Aí começariam a sentir o cheiro e o gosto das ciências naturais e não das invenções como as citadas pela jornalista. Loris
ResponderExcluirObrigado, Lorismário. Espero que você nos ajude a não deixar passar nada sem resposta.
ResponderExcluirTexto excelente para discussão, professor.
ResponderExcluirGeralmente eu tento dar exemplos da ficção para tentar deixar claro algum ponto. Por exemplo, Michael Crichton, em O Enigma de Andrômeda, deixa claro que a física e a química foram bastante incentivadas previamente. Chegou, então, a vez da biologia e suas áreas de especialização, desenvolverem procedimentos / tecnologias de estudo tão complexos quanto as outras ciências. Aí começa o problema, penso eu, em uma explanação estritamente biológica de comportamentos complexos. Chomsky é conhecido por "enfrentar o behaviorismo". Pinker tem feito algo semelhante, contudo mais discreto que os ataques diretos do de Chomsky. Isto pode ser exemplificado no livro The Language Instinct, de Pinker. O encadeamento das proposições do autor e comparação interespecífica faz o argumento "instintivo" parecer plausível e até fatídico: diante de um processo "evolutivo" é óbvio (!?) que os organismos tenham tamanha especialização que leve, inclusive, à seleção do que se conhece enquanto "mente" - um artigo na revista Mind & Language de 2005 discorre exatamente sobre isto e a relação com a proposição da Máquina de Turing. Aparentemente comportamentos complexos podem ser selecionados tal qual estruturas - simplificação da proposição mais direta de Chomsky e mais processual de Pinker. Isto leva a um determinismo biológico final: linguagem tem uma topografia tal qual se apreende dado que foi assim selecionada e "transmitida" (biologicamente). Isto, como o sr. sugeriu, é mais simples de explicar um processo de aquisição de repertórios verbais do que relacionar filogenia, ontogenia e cultura - caso último este que provavelmente poderia fornecer mais dados para explicação das exceções.
Ressalto ainda a ausência de discussão com relação a um número grande de proposições funcionalistas do desenvolvimento da linguagem, não apenas Skinner, como Lowenkron e seu "joint control", Hayes com os "quadros relacionais para dizer o mínimo.