Em 11 de janeiro de 49 Antes de Cristo o general (e
depois Imperador) Júlio César comandou seu exército na travessia do Rio
Rubicão, fronteira que separava a Gália Cisalpina, onde era governador, e a
Itália, a
caminho de conquistar Pompéia e depois Roma, desobedecendo o Senado romano.
“Atravessar
o Rubicão” acabou sendo uma expressão usada para indicar decisões que não
admitem volta. Entre uma graduação em literatura e um doutorado Skinner
atravessou seu Rubicão via laboratórios de biologia de Harvard, provavelmente
usando a filosofia como ponte. Nosso Rubicão é o rio que divide a psicologia
entre os que a consideram uma ciência natural e os que ainda acham que com o
homem é diferente.
Na
margem mais frequentada do Rubicão da Psicologia ficam todos os que explicita
ou implicitamente admitem uma agencia que inicia ações e toma decisões, um
“eu”, ou “self”, ou “pessoa”, ou “alma”, ou “espírito”, ou assemelhados, mesmo
quando admitem um papel também para o ambiente externo ao organismo. Os que
criam coragem e atravessam esse rio encontram o terreno ainda um tanto
selvagem, um tanto desconfortável, apesar de mais de 100 anos do trabalho
desbravador de Watson e de Skinner.
Do
lado skinneriano do rio da psicologia o comportamento é visto como evento
natural, fluindo constantemente, malha delicadíssima unida por antecedentes e
consequentes, organizando-se em repertórios específicos para tempos e espaços,
repertórios para reconhecer repertórios, produtos em parte da história de
evolução da espécie, em parte da evolução de cada comportamento, esta evolução
modulada por outros repertórios organizados de pessoas de seu grupo que exercem
as funções de agências de controle encarregadas de zelar por contingências
sociais.
Agora
vá lá e tente explicar isso para o seu vizinho ou seu aluno de primeiro
semestre. Para não perder a audiência muitos acabam usando a linguagem comum e
diária, a linguagem do leigo, não a da ciência, mas a linguagem do leigo é
mentalista e não tem lugar para uma pessoa sem um “eu” uno e indivisível,
autônomo, e responsável pelos seus atos.
Como
explicar que substantivos são abstrações, que o mundo é feito de verbos de
ação? Pessoas não têm “vida”, pessoas vivem. Pessoas não têm “inteligência”,
pessoas se comportam de maneira tal que são classificadas por outros como
“inteligentes”. A “inteligência” medida pelo teste de QI não é uma coisa, é um
conceito, o substantivo “inteligência” se refere a um conceito, uma abstração.
A “vida” não é uma sequência mecânica de pedaços de realidade amarrados uns aos
outros com arame. O que mais se aproxima do conceito de comportamento de
pessoas em grupo como postulado por Skinner em “Ciência e Comportamento Humano”
é o conceito de fluxo de William James (ainda que ele falasse de fluxo da consciência,
do pensamento apenas) e a maneira como essa ideia de fluxo é usada na
literatura. Para ilustrar, o que segue é um exemplo de fluxo da consciência:
“Como a humanidade é louca, pensou ela ao
atravessar Victoria Street. Porque só Deus sabe porque amamos tanto isto, o
concebemos assim, elevando‑o, construindo‑o à nossa volta, derrubando‑o,
criando‑o novamente a cada instante, mas até as próprias megeras, as mendigas
mais repelentes sentadas às portas (a beberem a sua ruína) fazem o mesmo; não
se podia resolver o seu caso, ela tinha a certeza, com leis parlamentares por
esta simples razão: porque amam a vida. Nos olhos das pessoas, no movimento, no
bulício e nos passos arrastados; no burburinho e na vozearia; os carros, os automóveis,
os ónibus, os camiões, homens‑sanduíches aos encontrões, bamboleantes; bandas
de música; realejos, no estrondo e no tinido e na estranha melodia de algum
aeroplano por cima das nossas cabeças, era o que ela amava, a vida, Londres;
este momento de junho. Porque era em meados de junho. ”
(Virginia Wolf, Mrs.
Dalloway, 1925, trad. port. Lisboa, Ulisseia, 1982,
pp.5-6. Transcrito do Wikipédia)
Esse
texto da escritora Virgínia Wolf é bom para ilustrar o que entendemos por rede
de comportamentos. Ninguém está só. Como escreveu Baum (1992), “O comportamento
ocorre em um contexto muito amplo, limitado só por nossa capacidade de conhecer
toda extensão da trama. ” Todo e qualquer comportamento ocorre como parte de
uma grande rede de eventos relacionados. Do nascimento à morte somos moldados
por (e fazemos parte de) alguma comunidade. Como notado por John Donne por
volta de 1600, nenhum homem é uma ilha (Baum, 1992). No texto famoso Donne
argumenta poeticamente, a partir da consciência de que todos pertencemos à
humanidade, que o que acontece a alguém afeta a todos, o que altera uma parte
altera o todo. O texto muito citado costuma ser encerrado por outra frase que
tem inspirado gerações, e que aqui vai por mim traduzida: “Se os sinos da
igreja tocarem pela morte de alguém, não pergunte por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti. ”
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A
seguir o texto original conforme pode ser encontrado no Google:
This is a quotation from John Donne (1572-1631). It
appears in Devotions upon
emergent occasions and seuerall steps in my sicknes - Meditation XVII,
1624:
"All mankind is of one author, and is one volume;
when one man dies, one chapter is not torn out of the book, but translated into
a better language; and every chapter must be so translated...As therefore the
bell that rings to a sermon, calls not upon the preacher only, but upon the
congregation to come: so this bell calls us all: but how much more me, who am
brought so near the door by this sickness....No man is an island, entire of
itself...any man's death diminishes me, because I am involved in mankind; and
therefore never send to know for whom the bell
tolls;
it tolls for thee."
Bibliografia
Baum,
W. M. (1995). Radical behaviorism and the concept of agency. Behaviorology,
3(1), 93-106. (www.researchgate.net/publication/233815151_Radical_Behaviorism_and_the_Concept_of_Agency)
Skinner,
B. F. (1953/1967). Ciência e
Comportamento Humano. Tradução de J. C. Todorov e R. Azzi. Brasília:
Editora Universidade de Brasília (1a edição da tradução).
Todorov, J. C. (1989/2007) A psicologia com estudo de
interações. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23, Número Especial, 57-61.
Parabéns professor, por mais este texto. Para o estudante ou alguém novo na Análise do Comportamento "atravessar o rubicão" exige a coragem de não mais explicar comportamento, de ver a vida, não com os olhos de uma cultura mentalista. É um processo. Abraço.
ResponderExcluirÉ preciso deixar io claro.
ExcluirMuito bom o texto professor! Acredito que não seria somente um texto para graduação, mas uma reflexão para Análise do comportamento em quanto ciência.
ResponderExcluirPois é, para não confundir "bandurista" com analista do comportamento.
ExcluirÓtimo texto, sem palavras! Foi o primeiro texto seu que li, por indicação de uma pessoa muito querida, e estou com vontade de ler outros. E de aprofundar meus estudos sobre o comportamento!
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