domingo, 30 de março de 2014

Sobre ditaduras e incertezas após o golpe militar de 1964.

                Este relato busca recuperar algo que aconteceu há 50 anos e que aparece na biografia do Prof. Fred S. Keller, agora contado do meu ponto de vista. Estávamos em São Paulo, devidamente enquadrados pela Profa. Carolina Martuscelli Bori, prontos para a viagem para Brasília, quando o golpe militar surpreendeu a todos. Os Keller já tinham chegado, indo para Brasília via São Paulo. Não sei o que aconteceu nos primeiros 15 dias depois do golpe militar de 1o de abril de 1964. Luiz Otávio de Seixas Queiroz, meu colega de apartamento em São Paulo, e eu nos mudamos para uma  casa de amigos. Notícias de colegas presos provocavam esse tipo de comportamento. Como terceiro vice-presidente do Grêmio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (aquele da Rua Maria Antonia) tinha herdado a presidência por desistência em série do presidente e outros vices durante a Greve do Terço da UNE, a greve pela participação dos estudantes nos órgãos colegiados da universidade. Era também membro da Ação Popular (fundada como braço político da Juventude Universitária Católica, a JUC) que se iniciava em São Paulo por influência do Betinho (o irmão do Henfil).  Até terminarem as notícias de prisões ficamos isolados, pois dizem que o seguro morreu de velho – afinal o prédio da UNE no Rio foi incendiado.
                Não me lembro como restabelecemos os contatos. Muito provavelmente procurei os Keller, pois habitualmente eram meus caronas para a Cidade Universitária – moravam no caminho. Não falavam quase nada de português, uma excelente oportunidade para desenvolver meus inglês incipiente. Nessas conversas fiquei sabendo, do lado deles, o que acontecia. As entradas do diário de Keller até 27 de abril mostram que estavam todos desorientados. Muito boatos, poucas notícias (Keller, 2009, p. 275). Não sabiam se os planos continuavam ou não, nem o que deveriam fazer em cada caso. Darcy Ribeiro enquanto reitor da UnB havia convidado Carolina Bori para implantar o Departamento de Psicologia e continuou a apoiar o projeto como Chefe da Casa Civil do Presidente João Goulart.
Em sua biografia Keller (Keller, 2009, p. 276) fala dessas conversas comigo. Esclareci que com o golpe ficamos desorientados, sem saber o que aconteceria com a Universidade de Brasília. A falta de notícias da Profa. Carolina provavelmente significava que ela também não tinha notícias. No dia 19 de abril Keller participou em São Paulo de uma reunião com Zeferino Vaz, na qual estavam lideranças como Crodowaldo Pavan e Antonio Cordeiro. Aí parece começar um período de mal entendidos que quase mata o projeto:
                “It was a period of confusion, of misunderstanding, and poor communications. As a result of that evening with Zeferino (in which Carolina was not present), the Americans were subjected to a gelo (a coolness, a cold shoulder) by the Brazilians and decided to withdraw from the project. We began procedures for our departure from Brazil. Our colleagues, in turn, decided to remain in São Paulo instead of going to Brasilia” (Keller, 2009, p. 275).
                O dia 27 de abril parece ter sido decisivo para a continuação do projeto no qual todos já tinham investido tanto. Keller fez uma palestra na PUCSP falando dos planos para Brasília (dos quais, segundo ele, já tinha desistido). Carolina Bori estava na audiência, com lágrimas nos olhos, segundo Keller.
                “João Claudio drove us home, where I was able to extract from him the source of our misunderstanding” (p.276).
                Por extract acima entenda-se o meu inglês. Naquela mesma noite Gil Sherman telefonou para os Keller exultante para dizer que os planos continuavam e iríamos todos para Brasília. Os Keller chegaram em 6 de maio de 1964.
                Já ouvi histórias sobre o comparecimento dos Keller a uma festa do Consulado Americano no dia 4 de abril, deixando furiosos seus colegas brasileiros. O diário de Keller registra uma festa no dia 4 onde “Everyone was there – alunos, professores, pessoas do Consulado Americano, e os amigos de 1961. Não diz quem organizou a festa, qual o motivo (homenagear os Keller?) nem desde quando estava marcada. Certamente quem foi circulava sem medo de ser preso. Como eu não circulava nesses dias, não tenho mais o que acrescentar.
                Por ocasião dos 50 anos do golpe militar que nos legou uma ditadura que durou 21 anos é importante contar para os mais jovens a falta que faz a democracia. Em sua coluna de 30 de março de 2014 a jornalista Tereza Cruvinel, ex-aluna da UnB, escreveu:
                “... a hora é de recordar para não esquecer, para que não sejam esquecidos os que foram sacrificados e para que não vinguem as narrativas que tentam relativizar os fatos. É preciso dizer que houve aqui uma ditadura que violou o estado de direito, cometeu crimes contra a humanidade, censurou, torturou e matou. “

                Segundo a jornalista Tereza Cruvinel, nesses 21 anos ocorreram 5248 cassações de mandatos e de direitos políticos, 5031 denúncias de torturas, 144 pessoas foram dadas como desaparecidas e 203 foram assassinadas por agentes da ditadura militar.

A UnB foi a universidade que mais sofreu durante a ditadura, com demissões de professores e expulsão de alunos. Até hoje não sabemos o que fizeram com o corpo do aluno Honestino Guimarães.


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Keller, F. S.  At my own pace, 

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