quarta-feira, 18 de junho de 2014

Choque cultural no futebol.


Em 1966, em Phoenix, Arizona, num parque público ajardinado, eu marcava o centroavante alemão no meio de campo. O time da Arizona State University (extra-oficial, o soccer ainda não era esporte universitário por lá) enfrentava, pelo campeonato do estado, o time conhecido por Luftwaffe, formado por pilotos alemães em treinamento em uma base aérea próxima. Nosso time estava no ataque, perdemos a bola e fui surpreendido por um chutão pra frente do beque deles. Precisei decidir em uma fração de segundo – não iria conseguir rebater de cabeça e o piloto alemão tinha uma saúde de velocista em olimpíada. Na fração seguinte daquele mesmo segundo levantei o braço e segurei a bola com a mão, como já havia feito dezenas de vezes no Brasil. Para minha surpresa, os torcedores (ainda bem que eram poucos) e os jogadores da Luftwaffe esbravejaram. Meus companheiros faziam de conta que não era com eles. Só eu não sabia que no soccer dos EEUU botar a mão na bola era conduta antiesportiva (uns 20 anos depois a FIFA decidiu que isso merecia cartão amarelo).
Lembrei-me dessa experiência com choque cultural quando vi na capa do New York Times a foto do Fred se esparramando dramaticamente na área da Croácia. Durante a transmissão do jogo pela ESPN os comentaristas e o locutor americanos reagiram indignados: uma desonestidade poderia dar a vitória ao Brasil em um jogo até então difícil. Dias depois não se fala mais do bonito gol do Neymar, nem da bela arrancada do Oscar e seu gol de bico: assunto é a malandragem brasileira. A notícia de primeira página continua no caderno de esportes com foto de Rivaldo fingindo contusão em 2002. O artigo pergunta: será que os jogadores norte-americanos também deveriam aprender a fazer isso e esquecer a cultura do “unsportsmanlike behavior”? 
O próprio jornal afirma que essa regra é tão forte na cultura que controla os jogadores até “inconscientemente”. Isso parece  valer mesmo só dentro do campo de jogo. No futebol americano (o football deles, não o soccer) a faltas têm nomes e são anunciadas pelo sistema de som aos espectadores – “unsportsmanlike conduct” e “unnecessary roughness” (contato desnecessário) são faltas punidas com grande perda de terreno. No beisebol o lançador é severamente punido quando acerta propositalmente uma bolada no corpo do rebatedor, uma forma de tirar o jogador do jogo. Mas lá como cá parece prevalecer aquela vontade de levar vantagem em tudo: feio não é roubar; feio é roubar e não poder carregar. O lançador é muito vigiado para evitar que coloque adições à bola, como goma de mascar, para conseguir trajetórias mais imprevisíveis; por outro lado, só recentemente o doping no beisebol e em outros esportes começou a ser levado mais ou menos a sério. No beisebol e no tênis feminino, por exemplo, o assunto doping só mereceu manchetes depois que o corpo de alguns atletas começou a mostrar efeitos públicos e notórios de hormônios.

Queremos acabar com o “cai-cai”, o espalhafato das quedas teatrais? Cartão amarelo sempre, mesmo que o atacante tenha levado uma botinada na canela. Cartão amarelo e inversão da falta, mesmo que tenha sido penalty. Os atacantes só cairão na área quando derrubados a pescoções.

3 comentários:

  1. Prezado João Claudio. Como você sabe, falou em futebol eu não consigo ficar calado. Mesmo sendo torcedor do Botafogo. Pior que o fato do Fred cai-cai foi o que ocorreu com o Marcelo contra o México. Tinha possibilidade de seguir em frente e fazer o gol. Simular é nojento. Eu tbém já joguei uma bolinha. Era muito jovem e como capixaba tinha influencia do Rio de Janeiro onde ser o "máximo" era ser esperto. Nem todos os cariocas se comportam assim. Uma vez disputando o campeonato Brasiliense de futebol de salão ( no tempo da bola pesada e gol só fora da área) ajeitei a bola com a mão para chutar e fazer o gol. Fui muito elogiado pelo nosso técnico e pelos companheiros de equipe por minha esperteza. Só meu irmão mais velho me criticou. Ficou valendo o apoio da maioria. Para minha felicidade decidi estudar. Aí deixei de jogar bola e passei a criticar a cultura do "esperto". Loris

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  2. A questão cultural levantada ultrapassa o esporte.
    Lendo o texto do Prof. Todorov e me relembrando de suas lições a respeito da Lei do Efeito, me questiono sobre as contingências a que um atleta como Fred ou Marcelo se expôs em seu desenvolvimento como homens e jogadores profissionais para naquele momento de escolha, em que há duas possibilidades: (1) pode se tornar um ninja e partir para o gol ou (2) simular uma falta e tentar bater um pênalti.
    Ao contrário dos estimados Todorov e Lorismário, tenho pouca experiência em campo e assistir futebol não é reforçador, mas creio que nossa cultura de malandragem seja mais reforçada por controle de regras do que realmente por seleção por consequências. Em minha observação, a probabilidade de dar merda (ainda mais num jogo profissional acompanhado ao vivo por tanta tecnologia) é maior do que a probabilidade de obter o resultado almejado.

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    1. Paulo, você vai gostar da análise do que ocorre com o jogador quando vai bater um penalti. Está no novo livro de Steven D. Levitt & Stephen J. Dubner (autores do "Freaknomics"), "Think like a freak". No caso do jogador que se joga para conseguir o penalti vale a mesma avaliação que envolve consequências positivas e negativas de cada alternativa.

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