Nas vésperas do Natal de 1986 eu era Vice-Reitor da Universidade de Brasília. Estando o Reitor Cristovam Buarque de férias, estava eu no exercício da Reitoria quando minha colega e ex-aluna Deisy das Graças de Souza me trouxe uma cópia de um artigo (Glenn, 1986) que acabara de ser publicado. Era o Metacontingencies in Walden Two da Sigrid Glenn. Estávamos em plena Constituinte, a Constituição que seria aprovada em 1988 estava sendo elaborada. Para acompanhar o processo havia sempre um bom número de professores de universidades federais de quase todos os estados trabalhando no Salão de Atos, adjacente ao Gabinete do Reitor. Era impossível trabalhar na reitoria e não falar da Constituinte. O que me aconteceu era, pois, plenamente previsível – ao ler a definição de metacontingencia e exemplos de metacontingencias cerimoniais e metacontingencias tecnológicas, de uma só vez me veio a concepção da Constituição como metacontingencia.
Esse foi o título do artigo publicado em 1987 e escrito na mesa do reitor entre o Natal e o Ano-Novo de 1986. Neste trabalho aproveito trechos do que foi escrito em 1986 e atualizo outros. Na verdade a constituição não é só uma, mas um conjunto de metacontingencias, umas cerimoniais, outras tecnológicas (Todorov, 1987). Uma lei sempre prescreve alguma conseqüência para algum tipo de comportamento. Ao examinarmos os artigos de uma lei veremos que alguns descrevem uma contingência tríplice completa – situação, comportamento e conseqüência. Em alguns casos, um conjunto de artigos descreve uma metacontingencia – uma serie de contingências comportamentais entrelaçadas que produzem um produto agregado recorrente. Um exemplo no Estatuto da Criança e do Adolescente (Todorov, Moreira, Prudêncio e Pereira, 2004) são os artigos que especificam os comportamentos requeridos de vários agentes do estado por ocasião do nascimento de uma criança em um hospital. O nascimento é a origem de uma seqüência de eventos encadeados e entrelaçados que termina com o registro da ocorrência em livro próprio pela enfermeira responsável.
Com maior freqüência leis estabelecem conseqüências aversivas e visam controlar comportamentos via punição. O Código Penal autoriza agentes do Estado a aplicar a punição. Algumas leis visam incentivar comportamentos desejáveis, do ponto de vista de quem redige a lei, e prescrevem conseqüências positivas para tais comportamentos. Em outros casos é a ausência de comportamentos que é punida ou recompensada, como a omissão de socorros (cadeia para quem deixa de prestar socorros) e a poupança voluntária (pagamento de juros para quem não gasta e deixa o dinheiro na poupança). Algumas leis apenas descrevem melhor regras para comportamentos que já ocorrem na sociedade – são as leis que pegam. Outras propõem mudanças nas práticas culturais existentes, e são mais duras de pegar. Nossa Constituição de 1988 foi classificada de utópica por um jurista estrangeiro que me visitou há dois meses por conter muitas especificações de mudanças em práticas culturais vigentes. Não é um texto que descreve relações sociais vigentes. Em grande parte descreve para onde deve mudar a nação. Um bom exercício para analistas do comportamento interessados no assunto é identificar no texto da Constituição contingências de dois e de três termos, metacontingencias e conjuntos integrados de metacontingencias.
Glenn, S. S. (1986). Metacontingencies in Walden Two. Behavior Analysis and Social Action, 5, 2-8.
Todorov, J. C. (1987). A Constituição como metacontingência. Psicologia: Ciência e Profissão, 7, 9-13.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Análise do Comportamento e a Constituição Cidadã.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Professor,
ResponderExcluirEu queria aproveitar o assunto que voce escreveu para fazer algumas perguntas, pois esse é um assunto que chama bastante minha atenção. Nao seriam nossas leis, as filosofias que as embasam, a forma que utilizam para fazer vigorá-las, ineficientes do ponto de vista do behaviorismo radical. além disso, me perdoe se eu estiver utilizando os conceitos de maneira inapropriada, os codigos legais nao poderiam ser considerados mais cerimoniais do que tecnologicas, e porque as primeiras sao mais insensiveis as contgs que as ultimas, dificulta assim a alteração de leis que nao sao mais eficientes ou até que nunca foram desde sua criacao e aprovacao? Grata , anne
Anne,
ResponderExcluirhá leis mais cerimoniais, outras mais tecnológicas. O ECA prevê mudanças em práticas culturais que não vão acontecer se não houver empenho em fazer cumprir a lei. Esse é um grande problema sempre. Uma vez aprovada a lei, todos descansamos, inclusive quem deveria cuidar de sua obediência, o governo.
Caro Todorov,
ResponderExcluirtratando-se do "rumo da nação", tem-se visto que no país atualmente, do ponto de vista das políticas públicas, existe contundente ênfase em “raças” nas áreas de saúde, educação, direitos civis, e assim por diante, visando o combate às desigualdades sociais. Para tal é necessário que o sujeito se encontre como sendo de uma "raça" ou de outra, sentimento de pertença (emitir comportamentos operantes verbais e não-verbais). Ação muito confusa e difícil em um país miscigenado como o nosso.
Entretanto as políticas de ações afirmativas, tais como cotas raciais, acesso ao funcionalismo público, bolsas de estudos, empregos em ONG's racialistas, ou seja, acesso aos bens materiais e status social (reforçadores) em uma sociedade, onde a maioria vive em constante privação deles.
Percebo que os comportamentos "legais" - consciência étnica/racial, principalmente a biracial "negros" e "branco" “afrodescentes” e “eurodescendentes” – serão reforçados pelo Estados (através da legitimação racial) e os “ilegais” comportamentos que visam buscar uma identidade brasileira, continente, cidadão de uma nação soberana acima de tudo, e lutar por politicas publicas de caráter geral, independente da cor, classe, região, e etc. serão extintos, pois não são fortalecidos pelo Estado e pela cultura vigente.
Podemos estar assistindo um país refundar seu mito de origem e enviesar seu rumo? Tal como foi o EUA com as leis Jim Crow e a África do apartheid?
Obrigado! Rodrigo Fantini
Rodrigo,
ResponderExcluirvocê coloca uma questão tão importante quanto difícil de responder. Publiquei na revista "Behavior and Social Issues" o artigo "Laws and the complex control of behavior". É só buscar no Google e fazer o download. Um, problema com muitas leis é que depois de publicadas no Diário Oficial ninguém mais se preocupa em fazer com que sejam respeitadas - são as leis que "não pegam". Espero que a controvérsia das cotas raciais não cresça ao ponto que você teme.
João Claudio Todorov
Olá professor,
ResponderExcluirMuito obrigado pela resposta. Consultarei o artigo sim. E também espero "atuando no meio" para que não vejamos uma mudança radical em nosso país. I hope so...
Rodrigo Fantini